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A MULHER COMO MEMÓRIA

Ana Maria Tepedino

  1. Introdução
Não sei se minha visita ao Caribe me impressionou muito, mas desde que voltei, não me sai da cabeça uma escultura: uma mulher de traços indígenas, de boca aberta, e com penca de crianças nos braços e no colo. Intrigou-me a figura e me explicaram tratar-se de uma imagem da tradição oral. Por isso a mulher sempre aparece de boca aberta, para contar às crianças as histórias do povo. Parece ser uma imagem bastante comum na América Central, no México e em algumas partes dos Estados Unidos, com tradição indígena e espanhola forte. Conheci uma mulher salvadorenha que trabalha pela libertação dos eu povo, sempre com risco de ser perseguida e morta, que me confessou que seu maior desejo, depois da paz no seu país, é ser uma velhinha para contar às crianças as histórias do seu povo. E isto me marcou deforma indelével. Conversando com um amigo espanhol sobre estas coisas, ele me disse que seu api lhe contava que a sua bisavó, que vivia nas montanhas, era procurada pelas crianças do lugar para que lhes contasse s histórias. Era uma mulher muito inteligente, lembrava muitos fatos e por isso se havia transformado na memória viva daquele povoado.
  1. A mulher como memória.
Com estes pontos de partida, comecei a refletir sobre vida da mulher, e sobre este hábito de guardar e relembrar todos os acontecimentos, sejam eles grandes ou pequenos. Isto acontece a ponto da «memória ser para a mulher um elemento decisivo da concreção que faz das coisas reais: data exata, o lugar preciso, etc» 1 A jovem recorda o primeiro olhar do amado, o primeiro beijo, a paisagem do primeiro encontro, enfim vai escrevendo dentro de si a história. A mãe recorda a dor do parto e a alegria de ver o bebê pela primeira vez, a angústia dos choros, o primeiro dente, a tentativa de andar, as quedas, as palmas, os olhares, os sorrisos, as primeiras dificuldades de relacionamento, as brigas, as desavenças. A história do filho fica escrita dentro dela e através do seu relato o filho vai conhecendo a sua história assim como a história daqueles que com ele se relacionaram. Nos momentos de conflito ou em tempos de dificuldades essa faculdade de memória fica mais aguçada. «Nas civilizações mais antigas e mais guerreiras a mulher se torna memória do povo. Os homens vão para a guerra e quando voltam elas lhes contam o que viveram, assim como se eles não voltam contam aos filhos os feitos dos valentes.» 2 Maria era uma mulher do povo, uma pessoa humana como nós, pobre e crente. Ela, por sua fé em Deus, é escolhida para se Mãe do Salvador. Também muito importante é o papel da mulher com relação à fé, na transmissão para os filhos (cf.2Tm 1,5:«Evoco a lembrança da fé sem hipocrisia que há em ti, a mesma que habitou primeiramente em tua avó Lóide e em tua mãe Eunice e que, estou convencido, reside também em ti»). Nas lutas populares as mulheres são muito participantes e corajosas, como vemos cotidianamente no Brasil hoje, no movimento dos sem-terra, nas invasões, nos assentamentos, e recordam todas as lutas como modo de encorajar outras a fazerem o mesmo. Assim como nas lutas pela libertação podem contar a história através da sua história e das/dos companheiras/os. E esse contar a história as anima para continuar a lutar. Tenho na memória mulheres de El Salvador, Guatemala, da experiência da Nicarágua, de Cuba, assim como nossas irmãs das CEBs, nas fábricas, nos sindicatos, nas associações de moradores, nas favelas, nos mutirões etc. Nesse contar comunitário que vai sedimentando a comunidade a mulher sempre sabe detalhes, porque presta mais atenção ao pequeno, porque aprende a valoriza-lo e se alegra com pouco. Como a história sempre foi/é escrita pelos vencedores, resta aos vencidos/pequenos o recurso da memória oral. A medida que relembra, recupera a identidade, que corre o risco de se perder. Relembrar e relatar tem função de passar a identidade de uma para outra geração:torna-se elemento de fidelidade ao eu, ao povo e vai sedimentando a comunidade. Daí a importância de relembrar os fatos e relatar a história. 3 Tivemos em Caxias, RJ, faz alguns anos, uma experiência de um estudo coletivo dos Atos dos Apóstolos. Foram sete encontros e em cada um era pedido que as diversas comunidades escrevessem sua própria história. Era fascinante notar com alegria que tinham ao relembrar e revelar como começaram, quais passos que haviam dado e aonde tinham chegado, o que era relatado com muito orgulho. Sempre as mulheres tinham um detalhe a mais para comentar, algo que havia ficado guardado em seu coração. Outra experiência foi num Círculo Bíblico na favela da Penha, RJ, em 1986, refletindo sobre o livro de Rute. As mulheres eram imigrantes vindas de várias partes do país, iam contando como tinham vindo parar no Rio. Iam acrescentando à leitura da Bíblia suas próprias histórias, até chegar a uma identificação: «Eu sou Rute, dizia uma delas...» Quando vemos álbuns de retratos vamos desfiando a história entre uma e outra foto, relembrando a vida vivida naqueles momentos e ligando com outros que não aparecem mas que não ficam esquecidos 4 . Essa memória do coração é uma característica feminina que os indígenas e os antigos que eram sábios valorizam muito e o evangelista Lucas também, quando diz que «Maria guardava tudo em seu coração» (Lc 2,19). Parece que lê se referia a essa qualidade feminina de ir guardando e fazendo história como voltaremos a falar adiante. Nas lutas populares, as mulheres são muito participantes e corajosas, como vemos cotidianamente no Brasil hoje, no movimento dos sem-terra, nas invasões, nos assentamentos e recordam todas essas lutas como modo de encorajar outras a fazerem o mesmo. Este Ano Mariano está desafiando a nós mulheres a repensarmos a figura de Maria para nós mesmas e para todo o povo. 5 Sabemos como Maria é importante para o povo latino-americano. Basta ver a quantidade de títulos que o povo lhe atribui para perceber sua importância como intercessora. 6 Maria era uma mulher do povo, uma pessoa humana como nós, pobre e carente. Ela, por sua fé em Deus, é escolhida para ser mãe do Salvador. Nota-se que ela vivia plenamente a solidariedade pois se coloca aos serviço da prima Isabel sem pensar em si mesma, assim como estava presente e atuante junto de Jesus com os olhos e ouvidos atentos às necessidades dos que a rodeavam (como vemos nas Bodas de Caná em Jô 2,1-12). Maria respeitava as opções de seu filho, mesmo se angustiando e demonstrando seus sentimentos (Lc 2, 28-51). Acompanha-os nos sofrimentos e morte estando presente aos pés da cruz (Jô 19,25), e continua junto da comunidade depois de sua morte (At 1,14). Dessa maneira, Maria ao guardar tudo em seu coração (Lc 2,19) não significa, como nos ensinaram que era uma pessoa passiva e calada mas significa que Lea ia escrevendo dentro de si, como todas as mães, a história do seu filho. Maria é pois a memória de Jesus! Essa mulher pobre e simples nos é apresentada pelo evangelista Lucas como uma verdadeira discípula não pelo fato de ser mãe de Jesus, como vemos pelo texto seguinte. A mulher que grita: «Felizes as entranhas que te geraram e os seios que te nutriram», Jesus responde: «Felizes antes aqueles que escutam as palavras do meu Pai e as observam» (Lc 11, 27-28). Somos levados a perceber que a vocação do ser humano homem ou mulher é ser discípulo, e Maria pela sua vida inteira o demonstra. Ela é bem-aventurada não só porque seu ventre gerou e seus peitos amamentaram Jesus, mas porque esteve sempre aberta e atenta à palavra de Deus, ao serviço dos demais. Através da vida de Maria percebemos um traço característico da pessoa humana, mais trabalhado na mulher: a relacionalidade. 7 A experiência de Deus das mulheres é relacional 8 e as abre aos outros para a participação na alegria e na dor, na angustia e na conquista. Parece que o fato de conservar uma vida dentro de si faz com que seu corpo se torne extensivo, ultrapassa o individualismo e vive a experiência da compaixão (sentir com) da solidariedade. Deste modo Maria, mulher pobre e crente, longe de ficar preocupada com seu próprio estado sai em auxilio da prima Isabel. Tal atitude é extremamente comum no meio do povo. Esta solidariedade natural, espontânea, esta entreajuda faz com que Maria se torne uma pessoa muito próxima e muita querida do povo. Por outro lado há um argumento que me parece muito interessante a respeito da importância (força) que a mulher nos meios populares tem na América Latina. Num estudo sobre a família na AL os autores revelam esta grande influência da mulher no meio do povo. Apesar de nossas indígenas depois as negras escravas terem sido violentadas e utilizadas para o prazer dos conquistadores, elas sempre tiveram os filhos fruto dessa violência e lutaram para educá-los com esforço, carinho e amor dentro de todas as dificuldades possíveis. Muitas vezes este processo se repetiu com os próprios homens do lugar. 9 Os filhos para vingarem as mães reproduzem com suas mulheres o mesmo comportamento, mantendo uma cadeia de opressão sexual.De modo que a mulher fica na maioria das vezes sozinha para lutar por seus filhos. Esta solidariedade natural, espontânea, esta entreajuda faz com que Maria se torne uma pessoa muito próxima e muito querida do povo. É sobejamente conhecida a opressão sexual, religiosa, social, econômica, cultural e simbólica que a mulher sofre. A discriminação é dupla se é pobre e tripla se é negra. Essa opressão é tão introjetada que ela pensa«não posso, não valho, não sei». Mas por outro lado num nível mais profundo de vida, pensando na sobrevivência dos filhos emerge uma força de «leoa». Ela se sacrifica, se mata, se gasta mas os educa, luta por uma vida melhor para eles. No encontro de Trindade os depoimentos eram sempre »estou lutando por uma vida melhor para meus filhos e netos». 1 0 E nesta dimensão estas mulheres violentadas, vilipendiadas, usadas e oprimidas são Grandes Mulheres e têm enorme força na vida de seus filhos. De alguma maneira essas Grandes Mães são reconhecidas e veneradas por estes filhos, de certo modo essas sem poder têm poder sobre eles e são ouvidas e consultadas por sua sabedoria que lhes veio da luta titânica pela vida. Ivone Gebara, através de seu contato nos meios populares, percebeu que Nossa Senhora é como uma «deusa» para o povo 1 1 . Nas situações-limite o povo apela para ela, que é poderosa, pode interceder por eles junto a Deus. Ela é uma pessoa igual a nós mas é diferente de nós. Ela é esperança, mãe, protetora, aquela que não abandona seus filhos. 1 2 Na minha percepção isto passa pela experiência das Grandes Mães das classes populares. 5. A respeito do Magnificat. Sabemos que os chamados Evangelhos da Infância foram os últimos a serem escritos, e me pareceu muito inspirado um artigo de Gonzáles Faus a respeito de Maria. 1 3 Primeiro ele nos chama atenção para não fazermos uma «mariologia da glória», mas para levarmos em consideração a pessoa e a história (isso é precisamente o que temos feito na AL onde Maria é companheira de caminhada, mulher profética e libertadora). Lucas nos apresenta no início de seu evangelho uma camponesa sem auréola, sem recursos e sem meios. Ela é de Nazaré (1,26) na Galiléia, esposa de um tal José (1,27). Só depois destes dados menciona seu nome: Maria. Uma Maria como muitas através de nosso continente. Nossa Senhora é uma pessoa igual a nós, mas é diferente de nós. Ela é esperança, mãe, protetora, aquela que não abandona seus filhos. Ela nos é apres4entada como uma mulher do povo e como memória deste povo. O evangelista coloca em seus lábios o Magnificat, a carta de identidade cristã, síntese da intervenção de Deus no mundo, expressão de seu projeto de amor. Maria vai nos revelar três dimensões da memória.

Lucas coloca essa potentíssima síntese teológica na boca daquele ser que na Palestina da época era o avesso do poder. Porém esta é a inversão que o Reino de Deus opera: os últimos se tornam os primeiros e os marginalizados os herdeiros. Por isso o evangelista abre seu evangelho com este grito de guerra que é o Magnificat. Diante da grandeza da ação de Deus na nossa vida pessoal e comunitária temos que cantar de alegria, proclamando seus grandes feitos. Interessante que a Bíblia coloca na boca das mulheres esses cantos: Miriam (Ex 15,20-21), Débora (Jz 5,31), Judith (Jt 13,17-18), Maria (Lc 1,46-55). A mulher não só guarda memória, mas também canta de alegria louvando e agradecendo a Deus pelos benefícios que Ele opera em favor do povo. Esta é a inversão que o reino de Deus opera: os últimos se tornam primeiros e os mais marginalizados os herdeiros. Por isso, o evangelista Lucas abre seu Evangelho com este grito de guerra que é o Magnificat. 6. Conclusão. Maria, como mulher, guardou e relembrou os acontecimentos. Demonstrou a importância da dimensão da memória. Pois viveu a dimensão de discípula fiel, acolhendo e buscando realizar na sua vida a vontade do Pai. Viveu como as outras mulheres a dimensão de memória do filho, seguindo e estando ao lado, compartilhando seus sofrimentos.Via como era a prática de seu filho em benefício dos homens e mulheres, humilhados, famintos, enfermos, despojados, contra os poderosos, dominadores e orgulhosos. Maria estava presente, atenta às necessidades das pessoas, buscando servi-las. Mesmo com todo o sofrimento da Cruz ela permanece junto à comunidade, corajosa e fiel, repetindo o seu Fiat a cada dia, confiante e esperançosa de que Deus não abandona os seus e que continua fazendo morada no meio de seu povo.

 

Bibliografia

1 J.I. Gonzáles Faus, Maria: Memória de Jesus/memória do povo em Memória de Jesus, Memória do Povo, Santander, Sal da Terrae 1984, p.20

2 Ibid., p.21.

3 Cf. os atos litúrgicos que começam muitas vezes cim “Lembra-se Israel...”

4 A literata Adélia Bezerra de Menezes em seu interessante artigo “O poder da Palavra” elabora como um poder feminino o uso da palavra, da narração para salvar a própria vida e para salvar a vida do povo, assim como instrumento humanizador”. Folhetim, Folha de São Paulo, 29/01/88.

5 Cf. o excelente livro de I. Gebara e M.C. Bingemer. Maria Mãe de Deus e dos Pobres, Petrópolis, Vozes, 1980 p. 113.

6 Cf. C. Mesters, Maria Mãe de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1980,p.113.

7 Cf. Carmen Flora/Bernachea, “Sobre a sexualidade feminina”, em REB 46, fasc. 181, Março de 1986, p. 48.

8 Cf. Consuelo Del Prado, “Eu sinto a Deus de outro modo”, em REB 46, fasc. 181, Março de 1986, p. 15.

9 Cf. F. E C. Zarama, La família Hoy, en Améica Latina, Colômbia, Indo American Press, 1980 p. 18.

1 0 Cf. Tereza Martia Cavalcanti, “Sobre a participação das mulheres no VI encontro intereclesial de CEBs, REB 47, fasc. 188, dez, Cf. V. Elizondo, A mulher pobre na história da América Latina, São Paulo, Paulinas, 1984.

1 1 Exposição oral, ISER, Seminário sobre Maria, 23/11/87.

1 2 Cf. op. cit. p. 38.

1 3 Cf. op. cit., p 15-32.